Dois amigos observavam de perto uma corrida entre o corredor de vermelho e o corredor de azul. Sabia-se que havia uma rixa entre eles há tempos e que os dois finalmente decidiriam quem seria o vencedor a partir de sua pontuação naquele dia. Foram eleitos por eles um juiz e um repórter para a abordagem do vencedor no final do percurso. Ambos os corredores estavam certos sobre sua superioridade e diziam a todos que tinham certeza de sua vitória porque era o mais rápido. “Venceria até mesmo diante de obstáculos, pedras no caminho, qualquer coisa”, diziam. E assim foi feito. Foram criados dois percursos diferentes, com obstáculos diferentes. O primeiro caminho era arenoso e tinha pouquíssimas pedras. O segundo caminho era irregular e coberto de cascalho. O primeiro para o corredor de vermelho, o segundo para o de azul.
Foi dada a largada e os corredores iniciaram confiantes seus percursos, mas logo que se depararam com os obstáculos, seus semblantes mudaram e as faces assumiram expressões de inconformidade. Ambos murmuravam e uma vez ou outra escutava-se a palavra injustiça. “Não é justo, o caminho dele é o mais fácil”, reclamavam, contrariando tudo o que haviam dito. Depois de alguns minutos, o corredor de vermelho chegou ao fim de seu percurso alguns minutos antes que o corredor de azul. Durante o caminho jurava reclamar que a diferença dos percursos era extrema e por isso injusta, mas como havia ganhado, nada foi dito. O vencedor ainda contava vantagem e dizia ao repórter que havia ganhado por mérito, pois seu caminho era mais difícil e isso não o impediu de vencer. Já o corredor de azul, reclamava da injustiça, assim como prometeu fazer durante boa parte do percurso.
A distância, os dois amigos observadores iniciavam um diálogo a respeito do que acabaram de ver:
Amigo 1: O vencedor parecia prezar pela justiça quando pensou que os obstáculos de seu caminho o levaria a derrota, mas preferiu não tocar no assunto depois de ter ganho. Isso só confirma a ideia de que usamos a justiça como pretexto para beneficiar a nós mesmos. O que você me diz?
Amigo 2: Talvez. Mas justiça é justiça, não importa quem foi o vencedor. Os caminhos são desiguais, então foi sim injustiça.
Amigo 1: Na verdade foram eles que pediram. Diziam que poderiam ganhar mesmo com obstáculos. A situação parecia justa no momento da largada, porque eles concordavam com a presença de obstáculos, porque eles estavam certos de que iriam ganhar…
Amigo 2: Optaram pela injustiça, então. A justiça sempre é boa. Se os caminhos fossem iguais, toda essa confusão não estaria acontecendo.
Amigo 1: Certo. Até aí concordo, mas eu tenho certeza que se a situação fosse inversa, quero dizer, se o corredor de azul tivesse ganhado, não estaria reclamando sobre injustiça, da mesma forma que se o de vermelho tivesse perdido, reclamaria, como prometeu durante o percurso. Ou seja, o de vermelho só não reclamou porque ganhou e o de azul só reclamou porque perdeu. É um jogo de interesses. Usam a justiça ou a ausência dela para se beneficiar. Não se importam realmente com ela.
Amigo 2: Entendo seu ponto e concordo, mas a justiça está alheia a tudo isso. Observe que nós que apenas observamos a distancia sabemos muito bem que não foi justo, mas no ponto de vista deles, que têm seus interesses em jogo, a questão é bem diferente. A justiça em si ainda é boa, são eles quem a corrompem.
“Aqueles que criticam a justiça não a criticam por recearem praticá-la, mas por temerem sofrê-la.”
— Platão